Camilo Lourenço
Portugal teve eleições para o Parlamento, que não produziram uma maioria absoluta. Não é uma surpresa. Apenas três vezes em 40 anos de democracia os portugueses deram maioria absoluta a um único partido.
Mas desta vez houve surpresa. Porque o líder de um dos partidos que perdeu as eleições resolveu quebrar um “costume” (constitucional) contrariando a opinião de figuras gradas do mesmo partido: o de que o chefe do Estado convida para primeiro-ministro o líder da força política que tem mais votos.
A discussão em volta deste assunto ilustra bem o défice de maturidade da classe política. Quem perdeu não aceita que perdeu porque os outros partidos juntos têm mais votos do que a coligação que ganhou. E com base nesse argumento defende que o Governo deve ser formado com base nesses três partidos. O que é curioso é que se socorre do mesmo artigo da Constituição que serviu para, em todas as eleições, nomear a força política que ficou em primeiro lugar. Ou seja, o artigo que serviu para nomear primeiros-ministros mesmo quando o seu partido ganhava com maioria relativa, é agora subvertido para justificar a opção exatamente oposta.
Sendo isto matéria constitucional, fora do âmbito da gestão, por que trago o assunto hoje ao debate? Porque revela um gravíssimo défice de liderança política em Portugal. Quem quer dirigir um país não pode “vergar” as leis a seu bel-prazer. Eu sei que a tentação é grande; sobretudo quando está em causa a sobrevivência de A, B ou C. Mas há limites que nenhum líder deve ultrapassar. Sob pena de passar a imagem de que não quer perder.
A esta hora há de haver leitores a dizer que todas as interpretações são possíveis. Porque a Constituição não diz claramente que o Presidente deve convidar o líder da força mais votada. Diz que o Presidente nomeia o primeiro-ministro tendo em conta os resultados eleitorais. Há duas razões para defender que isto não faz sentido. A primeira é que a leitura das discussões ocorridas na Comissão de Revisão Constitucional de 1982, que reviu esta norma, aponta claramente para a escolha do partido mais votado (pormenor que ninguém refere nesta discussão). A segunda é que uma Constituição não pode prever tudo ao pormenor. Usando terminologia popular, a Constituição não pode ter lá tudo. Isso permite que vá sendo interpretada consoante a época. E a verdade é que ao longo dos últimos 38 anos criou-se um “costume” constitucional. Que tem de ser respeitado por todas as forças políticas porque ele configura aquilo que normalmente se chama a “constituição material”.
Os portugueses adoram criticar o que é nacional e elogiar o que vem de fora. Nada melhor, então, do que analisar exemplos estrangeiros. Inglaterra não tem uma constituição formal; mas tem uma constituição material. É ela que dita quando um Governo convoca eleições. E o que devem as diversas forças políticas fazer nas mais variadas circunstâncias. Essas questões nunca foram objeto de lei. Mas foram objeto de um “hábito com consciência de obrigatoriedade” que as leva a serem respeitadas por todos. A nossa democracia, de facto, ainda está longe da maturidade. Muito por culpa do défice de liderança da nossa classe política.
15-10-2015
Camilo Lourenço é licenciado em Direito Económico pela Universidade de Lisboa. Passou ainda pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque e University of Michigan, onde fez uma especialização em jornalismo financeiro. Passou também pela Universidade Católica Portuguesa. Comentador de assuntos económicos e financeiros em vários canais de televisão generalista, é também docente universitário. Em 2010, por solicitação de várias entidades (portuguesas e multinacionais), começou a fazer palestras de formação, dirigidas aos quadros médios e superiores, em áreas como Liderança, Marketing e Gestão. Em 2007 estreou-se na escrita, sendo o seu livro mais recente “Saiam da Frente!”, sobre os protagonistas das três bancarrotas sofridas por Portugal.