José Cassandra: Em S. Tomé poucos ainda podem muito e muitos só podem pouco

José Cassandra: Em S. Tomé poucos ainda podem muito e muitos só podem pouco
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Em entrevista ao Portal da Liderança, José Cassandra, Presidente do Governo Regional do Príncipe referiu que "durante a luta eleitoral decorrente das eleições legislativas, cometemos alguns erros mas a política é uma aprendizagem constante da deceção". "Perder em política não é sinónimo de deixar de ter razão".

Portal da Liderança (PL): Foi um dos mentores do Movimento Novo Rumo cujas expetativas geradas não se traduziram em resultados eleitorais, embora tendo conseguido eleger um deputado na Região Autónoma do Príncipe. Os analistas falam mesmo em fracasso do Novo Rumo. Em termos de liderança, o que faltou ao movimento? 

José Cassandra (JC): O Novo Rumo foi um Movimento que nasceu e não teve tempo para crescer, amadurecer e caminhar, minimizando os fortes condicionalismos, político, social e cultural, do nosso contexto. Cá em São Tomé e Príncipe, infelizmente, a conquista eleitoral ainda não é sinónimo de uma oportunidade, simbólica ou material, de poder à disposição muitos, na medida que poucos ainda podem muito e muitos só podem pouco. O “banho”, por muito que nos custe admitir, ainda é uma das manifestações deste poder de poucos sobre muitos com todas as consequências negativas para a consolidação e aprofundamento da nossa democracia, designadamente, na escolha livre e ponderada dos projetos políticos apresentados nos diversos sufrágios eleitorais. Para além do fenómeno “banho”, ainda perduram entre nós, infelizmente, tiques muito vincados de personalismo no nosso sistema político-partidário, cuja origem está relacionada com a baixa escolaridade da generalidade da população, com as altas taxas de pobreza e com um caldo cultural decorrente do nosso percurso histórico, bem como com a nossa exiguidade territorial e populacional, cujas manifestações mais evidentes estão relacionadas com o fraco ou nulo intervencionismo cívico.

Para além disso, não descarto responsabilidades nenhumas. Tenho de reconhecer que durante o processo de implantação no terreno do Movimento Novo Rumo e, sobretudo, durante a luta eleitoral decorrente das eleições legislativas, cometemos alguns erros, nomeadamente o facto de termos estado, naquela altura, muito concentrados e preocupados com a mensagem pedagógica e cívica em torno da explicação ao povo das consequências do “banho”, por exemplo, em detrimento da explicação exaustiva e agressiva, no bom sentido da palavra, da mensagem que o nosso projeto político contemplava para o país. Neste caso admito, sem qualquer problema, que fracassamos.

Mas também é verdade que a política é mesmo assim, ou seja, uma aprendizagem constante da deceção. Além disso, perder, em política, num contexto sociocultural como o nosso, com as caraterísticas que mencionei acima, não é sinónimo de deixar de ter razão. Muito pelo contrário. E aquilo que tenho feito no Príncipe, de forma reiterada, é a continuação desta aposta, que já veio do Novo Rumo, que é a criação de condições, em termos pedagógicos e políticos, para que as populações comecem a ter um papel e consciência da sua importância na defesa dos assuntos que a todos nós diz respeito, permitindo que comecemos a trilhar um caminho de configuração do poder à disposição de muitos, independentemente das responsabilidades individuais e institucionais de cada ator político.

PL: É comum afirmar-se em São Tomé e Príncipe, que a insularidade é um dos entraves ao desenvolvimento do País. Os altos dignatários da região autónoma falam em dupla insularidade, acusando-a de condicionar as estratégias de desenvolvimento da região e alguns dos objetivos traçados pelo poder regional. Qual a estratégia que tem sido utilizada para alavancar toda uma região em torno do seu desenvolvimento?

JC: Em primeiro lugar, como eu afirmei acima, é não abdicar de trilhar um caminho, pedagógico, cívico e político, de configuração do poder, que permita a disposição do mesmo a todos aqueles que vivem na ilha do Príncipe e mesmo àqueles que sendo do Príncipe se encontram um pouco espalhados pela diáspora. Neste âmbito, todos foram chamados para se pronunciarem em matérias como o Novo Estatuto Político e Administrativo da Região, bem como para o fornecimento de subsídios que permitiram a elaboração do Plano de Desenvolvimento para a ilha do Príncipe e ainda, para se exprimirem, sempre que existam constrangimentos ou dúvidas relacionadas com a implementação de projetos de investimento de grande amplitude e consequente impacto ambiental no contexto local. 


Todos somos poucos para a causa do desenvolvimento da ilha do Príncipe.


Nunca se realizou cá no Príncipe como agora tantas palestras, conferências, seminários e reuniões de auscultação da população para tarefas que têm a ver com o nosso futuro comunitário. As pessoas começam a habituar e a interiorizar a ideia da importância da sua contribuição, individual e coletiva, no processo de construção do futuro da ilha do Príncipe. Aliás, dar-lhe-ia, como um exemplo deste ativismo cívico e político da nossa população, a forte manifestação contra a implementação do projeto Agripalma na região. Aos poucos as pessoas começam a interiorizar a ideiade  que têm responsabilidades, em termos cívicos e políticos, na resolução dos problemas no presente e na construção do futuro. Isto não é, nem pode ser, só tarefa dos governantes regionais. 

PL: Nem sempre a relação do seu governo com o poder central foi de entendimento. Momentos houveram de muita tensão e de muito músculo. Na sua opinião, a liderança faz-se também com músculos?

Jose-Cassandra-Pinto-CostaJC: A liderança política nunca se faz com músculos. A política é sobretudo, um compromisso e deve ser uma atividade que sirva para resolver ou minimizar conflitos sociais de um modo racional. Caso contrário andaríamos constantemente em guerras uns contra os outros. Aliás, a política, em democracia, é exatamente a forma encontrada para dar resposta aos problemas das pessoas porque estas provavelmente cansaram-se da violência e da guerra. Se olharmos um pouco pelo mundo, constatamos que países ou civilizações que têm uma democracia mais consolidada, como alguns países europeus, tiveram longos períodos de guerra e violência na sua história e que provavelmente entenderam, depois deste percurso, que qualquer coisa serviria melhor os interesses dos povos do que a guerra ou a violência. Para tal é preciso uma linguagem de compromisso constante. Nem sempre as nossas relações com os diversos governos centrais foram boas, é verdade. Foram melhores com uns do que com outros e houve alturas em que, com um mesmo governo central, as relações evoluíam num sentido ou no outro, consoante os interesses político-partidários e de outra natureza em presença. Nestes casos existe sempre alguma tensão que é próprio da política e que normalmente acaba sempre em compromissos. 

PL: O movimento (UMPP - União para Mudança e Progresso do Príncipe) que lidera, venceu as eleições com maioria absoluta. Na sua opinião, quais as caraterísticas de liderança fundamentais para se ser um bom líder em São Tomé e Príncipe? 

JC: Eu sempre fiz questão de usar uma máxima que utilizo constantemente na minha vida política ou mesmo na profissional que é: 


Nenhum empreendimento político, social, económico ou mesmo científico pode ter sucesso sem a adesão dos colaboradores e de uma clientela que o sustente de forma razoável no tempo e no espaço.


É utópico pensarmos que podemos ter sucesso político ou profissional minimizando estes contributos. Para além disso é essencial ter antes um planeamento estratégico, para sabermos para onde queremos ir e com que meios iremos. Por isso, desde o princípio, decidi, de acordo com a hierarquização de prioridades que mencionei acima, que era desejável, em primeiro lugar, a construção de um Novo Estatuto Político-Administrativo para a Região Autónoma do Príncipe e, em segundo lugar, a elaboração do Plano de Desenvolvimento Regional. Estes dois instrumentos são indispensáveis para a configuração do nosso futuro com sucesso. E tudo isto só foi possível, como também já disse anteriormente, com um forte contributo da população do Príncipe, que esteve ativamente envolvida em todas as fases destes dois grandes projetos. 

PL: Em termos capacidades de liderança, o que falta aos líderes são-tomenses? 

Jose-Cassandra-3JC: Não creio que seja desejável estar a emitir juízos de valor sobre o trabalho e a atuação dos outros, sobretudo no domínio da política ou da liderança cujas “receitas”, muitas vezes, variam em função das circunstâncias. Normalmente liderar pressupõe: planeamento, organização, coordenação e controlo dos processos e resultados. Só que, em política, muitas vezes, os meios para o desenvolvimento de uma determinada ação podem não existir e temos que, alternativa e necessariamente, construir ou encontrar algo para o lugar daquele meio que não temos. 


Não podemos andar a reclamar sucessivamente sobre a ausência de meios.



É isto que distingue a política de outras atividades. Ou seja, temos sempre de fazer o nosso melhor com as condições que existem. Um engenheiro pode, por exemplo, não construir uma ponte se lhe faltarem materiais de construção. E ele tem sempre esta desculpa. Eu, na política, não posso estar constantemente a desculpar-me com a realização de ações por falta de meios. Tenho sempre de fazer o melhor possível com os meios que existem. O que eu acho que nos falta, cá em S. Tomé e Príncipe, é tornar o planeamento e a organização em elementos fundamentais da nossa ação política e, como tal, minimizar a ocorrência de desperdícios e de negatividade decorrente da realização das ações de acordo com os meios colocados ao nosso dispor. 

PL: É Presidente da Região Autónoma do Príncipe. Quais os principais desafios de liderança que se lhe deparam? 

JC: Os principais desafios, decorrentes aliás daquilo que já mencionei acima, estiveram relacionados, numa primeira fase, com a construção de uma base social e política de apoio que suportasse a construção dos alicerces referenciados anteriormente e que permitiriam uma governação com sucesso, sobretudo porque a fragmentação político-partidária na região era um dado com grande significado. Todos os partidos políticos tinham a sua base de apoio, com forte implantação, cá na região, e ignorar ou desprezar tal facto convencido que a UMPP seria suficiente, como suporte social e político, sempre me pareceu contraproducente. Por isso, entendi que deveríamos incluir todos, independentemente da filiação partidária de origem de cada um. Era necessário diluir a expressão e manifestação político-partidária regional para dar significado e alcance ao Príncipe como entidade comunitária. Como já disse anteriormente, um dos entraves nas negociações ou entendimento com os diversos governos centrais estava relacionado, algumas vezes, com interesses ou obstáculos de natureza político-partidária. Seria uma casmurrice repetirmos os mesmos erros dos diversos governos centrais. 

PL: Como gere e motiva a sua equipa? 

JC: Num meio pequeno e com poucos recursos, humanos e financeiros, como o nosso, a prioridade deve ser sempre a hierarquização de prioridades que vão de encontro às necessidades presentes e futuras da região e, consequentemente, o estabelecimento de metas e objetivos políticos compagináveis com tal hierarquização de prioridades. Neste âmbito, a minha preocupação primordial foi sempre procurar colaboradore, com competências críticas tendencialmente dirigidas para a definição das necessidades referenciadas anteriormente. Após tal expediente, a solução é, basicamente, numa primeira fase a entrega de responsabilidades de forma clara aos elementos em causa e, posteriormente, tornar a autoavaliação política dos processos e resultados atingidos, num recurso importante e transversal na administração da região. As pessoas, de uma forma geral, quando diante deste quadro conceptual e organizacional de procedimentos, tendem a valorizar o trabalho em equipa e o compromisso político. Além disso, sempre que possível, tento agir como um modelo para os outros em tarefas exigentes e, nalguns casos, com sacrifício pessoal e familiar em prol da comunidade. É importante nunca descurar a ideia de que todos são importantes, uns mais do que os outros, em todos os processos de tomada de decisão política, o que não quer dizer que a responsabilidade política possa ser delegável. Ou seja, deixar-me aconselhar, auscultar a população, ouvir as pessoas, não é sinónimo de transferência de responsabilidades políticas que são minhas.

PL: Como é que a sua liderança tem impulsionado as conquistas e os desafios de desenvolvimento da região, num contexto de escassez de recursos que limita as ações políticas? 

JC: Fazendo exatamente aquilo que disse na questão anterior. Ou seja, fazer o melhor possível com os meios ou recursos que tenho ao meu dispor e comprometendo, neste desiderato, toda a comunidade.

PL: Qual foi a situação que o fez aprender mais em termos de liderança e o que aprendeu? 

JC: Creio que foi uma situação qualquer, na minha infância, durante uma brincadeira menos recomendada, que levou a minha avó a alertar-nos com esta simples expressão: “nunca ligues qualquer aparelho que não saibas como fazê-lo parar; nem acendas nada que não saibas como apagar”. Na altura achei pertinente aquele conselho que hoje em dia acho que tem toda a relevância no contexto político. De facto, muitas vezes, na política e sobretudo na liderança politica, é desejável tomar decisões políticas todos os dias com o objetivo de dar resposta aos problemas presentes e futuros. Mas nem sempre existe a lucidez necessária, perante a dimensão e complexidade dos problemas em causa, para dar respostas aos mesmos valorizando as consequências no presente e no futuro que daí podem despertar. Por isso é que se torna necessário um certo planeamento estratégico e uma organização que suporte com sentido as nossas decisões políticas com o menor risco possível. Dai também a relevância da elaboração do Plano de Desenvolvimento Regional que contemple de forma organizada, metódica e atempada o caminho que pretendemos trilhar, minimizando a ocorrência de riscos desnecessários no futuro. Aliás, há casos de genocídios, guerras e outros crimes contra a humanidade que decorrem de decisões políticas mal pensadas ou deficientemente tomadas, porque os atores políticos não souberam prever com algum rigor os riscos ou consequências associadas a essas tomadas de decisão. 

PL: Quais são os três principais desafios que confrontarão os líderes políticos nos próximos 10 anos? 

Jose-Cassandra-8JC: Eu creio que continuará a ser, infelizmente, o desemprego, a escassez alimentar em territórios como o nosso, e a pressão sobre os recursos florestais ou ambientais de forma genérica. 

PL: Quais são as três qualidades mais importantes para um líder político nos próximos 10 anos? 

JC: A capacidade de Planeamento e Organização, a capacidade de mobilização e a capacidade de fazer o melhor possível em prol das populações, num contexto de sustentabilidade dos recursos naturais e de defesa dos interesses das gerações futuras. 

PL: Onde mais tendem a falhar os líderes políticos? 

JC: Tendo em conta a complexidade e a grandeza dos problemas que existem no presente a urgir resposta, normalmente falta capacidade de visão, de organização e de planeamento para configurar o futuro e, consequente e simultaneamente, defender os interesses das gerações futuras.

Índice de fotografias por ordem de surgimento:

  1. Visita de cortesia ao Sporting Clube de Portugal em dezembro de 2012. O pai do Presidente do Príncipe foi um dos fundadores do Sporting Clube de Príncipe, o segundo Núcleo Sportinguista a aparecer fora de Portugal.
  2. Com Manuel Pinto da Costa, Presidente da República de São Tomé e Príncipe, em visita à ilha do Príncipe. 

 


Jose Cassandra 7José Cardoso dos Ramos Cassandra nasceu a 17 de Fevereiro de 1964 na ilha do Príncipe, onde fez os estudos primários. Em Cuba desde 1981, concluiu em 1986, no Instituto Superior Politécnico de Havana, o curso de técnico de transporte. De 1989 a 1992, frequentou o curso intensivo de Gestão de Recursos Humanos no INA em Oeiras. Entrou para a política em 2004, ano em que foi eleito deputado da Assembleia Nacional pelo círculo do Príncipe, nas listas do Movimento Novo Rumo. Em 2006, concorreu às eleições regionais e foi eleito Presidente do Governo Regional do Príncipe, cargo que ocupa até a presente data.