Salim Valá: É preciso tornar o “vírus do empreendedorismo” um fenómeno de massas em Moçambique

Salim Valá: É preciso tornar o “vírus do empreendedorismo” um fenómeno de massas em Moçambique
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Salim Valá, Secretário Permanente do Ministério da Planificação e Desenvolvimento de Moçambique, refere que este "é um país bem posicionado para erguer uma pujante economia multissectorial", sendo que "o reforço da capacidade das instituições locais deve ser uma prioridade da governação" do país.


A solução para a rápida e abrangente erradicação da pobreza está dependente da capacidade que tivermos de empoderar as famílias pobres economicamente ativas de Moçambique.


Portal da Liderança (PL):  É um homem apaixonado pelas temáticas do desenvolvimento económico local e do desenvolvimento agrário e rural. O que mais o interessa nesses temas?

Salim Valá (SV): É verdade, tenho sido ao longo de mais de duas décadas um apaixonado, apaixonante e aprendiz motivado dessas temáticas e das problemáticas por elas levantadas, particularmente em Moçambique. Tenho uma profunda paixão, uma grande empatia e uma ligação umbilical com o desenvolvimento agrário e as áreas rurais. Sou oriundo de uma das mais importantes regiões agrárias de Moçambique, o vale do Limpopo, mais concretamente a zona do Chókwè. A minha terra é uma região privilegiada para se compreenderem as problemáticas do desenvolvimento rural e agrário nas suas diferentes perspetivas. Durante o período colonial, foi a região de implantação de um grande empreendimento destinado a dar corpo a várias ideias e mitos do Estado colonial português (o Colonato do Limpopo). Na pós-independência, a região foi considerada pelo malogrado Presidente Samora Machel como o “Celeiro da Nação”, tendo sido usada como uma laboratório para testar diferentes experiências de desenvolvimento rural e agrário e alvo de significativos investimentos públicos, com destaque para a implantação do Complexo Agro Industrial do Limpopo (CAIL), a Secretária de Estado para a Região do Limpopo e Incomáti (SERLI), a Unidade de Direcção Agrária (UDA) e, mais recentemente, a Hidráulica do Chókwè (HICEP). Esta é a razão, digamos, de âmbito maternal. Cresci nas terras lamacentas e poeirentas do Chókwè, assistindo ao cultivo do arroz, tomate, cebola, repolho, algodão, etc., bem como a criação de gado bovino, caprino e suíno, atividades que, combinadas com o trabalho migratório da força de trabalho masculina para servir o capital mineiro sul-africano, serviram como matriz central da economia política da região.

Por outro lado, tenho uma razão mais de índole racional e profissional. Moçambique possui uma superfície de 799.380 Km2, tem cerca de 24,3 milhões de habitantes (segundo as projeções) e 36 milhões de hectares aráveis, dos quais apenas cerca de 15% são cultivados. Atualmente, cerca de 70% dos habitantes do país vivem nas áreas rurais, mas a agricultura contribui com menos de 25% para o PIB, embora estejam envolvidos nessa atividade perto de 80% da população economicamente ativa. Por si só, esses indicadores confirmam a tese de que a agricultura e as áreas rurais têm um enorme potencial para combater a fome, criar novos e promissores postos de trabalho, fomentar a indústria ligeira, reduzir a pobreza e dinamizar a economia multissectorial rural. Acredito, portanto, que as áreas rurais, o desenvolvimento económico local e a promoção agrária estão na centralidade do debate atual sobre o desenvolvimento sustentável do país e, devidamente exploradas e otimizadas, podem contribuir para a recuperação da economia nacional e uma mais rápida redução da pobreza. Não podemos perder de vista que, em muitos casos, é nas áreas rurais e na agricultura que o subdesenvolvimento é estigmatizado, o que requer uma nova moldura teórica e prática que questione esse paradigma obsoleto com ações concretas para potenciar as famílias rurais e viabilizar os seus sistemas de produção atuais, que, em muitos casos, ainda se encontram nos limites da subsistência.

É isso que me faz estar preocupado com esses assuntos e me leva a pensar, repensar e indagar permanentemente sobre o porquê de estamos nesta situação e como podemos fazer de outra forma e obtermos melhores resultados. A minha visão é que a solução para a rápida e abrangente erradicação da pobreza está dependente da capacidade que tivermos de empoderar as famílias pobres economicamente ativas de Moçambique. O que fazer parece que é sabido, faltando apenas ter as estratégias corretas, mobilizar os meios necessários e ter a firmeza, a criatividade e a consistência na implementação do caminho selecionado. O que não podemos fazer é dar-nos ao luxo de perder tempo, pois ele é um recurso muito caro para aqueles que vivem mergulhados na pobreza, na fome, no desemprego e na gritante falta de oportunidades de alcançar o bem-estar e viver uma vida digna.

PL: Qual é a importância que atribui ao empoderamento das estruturas locais moçambicanas no processo de desenvolvimento económico do país?

SV: Devo enfatizar que, na minha ótica, o mote principal do desenvolvimento é o bem-estar, a liberdade e a felicidade do ser humano, na sua multidimensionalidade. Portanto, o empoderamento das pessoas e das suas instituições deve ser uma prioridade de primeira linha. Aliás, comungo da visão do Professor Muhammad Yunus, Laureado com o Prémio Nobel da Paz em 2006, ao encarar o microcrédito não como um fim em si, mas como um instrumento poderoso, ao alcance dos pobres, para fazer com que lutem para erradicar a pobreza de forma digna. Através do amplo acesso ao microcrédito, os pobres economicamente ativos podem criar seus próprios postos de trabalho, gerar renda acrescida e contribuir também para melhorar as condições de vida da sua família nos domínios da educação, saúde, água e saneamento, habitação, cultura, comunicação, entre outros, o que vai gerar um círculo virtuoso do empoderamento do indivíduo, da família e da comunidade.


O empoderamento das pessoas e das suas instituições deve ser uma prioridade de primeira linha.



É evidente que o reforço da capacidade das instituições locais - públicas, privadas, civis e comunitárias – deve ser uma prioridade de governação por forma a assegurar a implementação plena dos ditames da descentralização e para que os cidadãos possam ter as “ferramentas” concretas para explorar o potencial dos recursos que os distintos territórios de Moçambique comportam. O empoderamento das estruturas locais não se restringe apenas à capacitação e treinamento das pessoas e instituições, mas igualmente implica a ampliação de acessos ao financiamento, mercados, infraestruturas, assistência técnica e de gestão relevante e de qualidade, adequado ambiente de negócios, para o potenciamento das microunidades económicas e sociais que permitam que a maior parte dos moçambicanos possam ter a oportunidade de materializar os seus sonhos.

Apostar no empoderamento das estruturas locais é uma opção estratégica que visa dotar os territórios de energia para iluminar o desenvolvimento local. Não tenho dúvidas que, para países como Moçambique, outras palavras valiosas para expressar a conceptualização de desenvolvimento são a descentralização, a participação comunitária e a cidadania. O empoderamento das estruturas locais tem o condão de acelerar, tornar mais abrangentes e inclusivos os esforços de desenvolvimento local e nacional. A nossa experiência recente de constituição e funcionamento dos Conselhos Consultivos Locais (CCL’s) ensina que os distintos segmentos das comunidades precisam de mais espaço para intervir, ter uma voz mais ampla, ter vez e mais poder para discutir e propor os cenários mais apropriados e sustentáveis dpara implementar as políticas públicas ao nível distrital e local. Essas novas institucionalidades locais e comunitárias, que potenciadas com a oportunidade de decidir sobre os “7 Milhões”, vieram pavimentar novos formatos de diálogo, negociação e tomada de decisão sobre assuntos da esfera pública, ampliando a cidadania, fortalecendo a democracia direta e participativa, aprimorando os mecanismos de participação e prestação de contas e combatendo os excessos, desvios e práticas corruptas dos oficiais do Estado. É óbvio que os resultados obtidos são claramente encorajadores, mas o caminho a percorrer é ainda muito longo e sinuoso.

PL: Do seu ponto de vista, quais são os principais “nós de estrangulamento” que condicionam o desenvolvimento económico local em Moçambique?

SV: Como sabeis, Moçambique é um país que está há pouco mais de 38 anos independente do jugo colonial e, nesse período, foi fustigado por uma guerra de 16 anos que deixou muitas feridas, algumas delas não devidamente saradas. Os constrangimentos que, na minha perspetiva, mais bloqueiam o desenvolvimento económico local são:

  • Baixo nível do capital humano, reduzida produtividade da força de trabalho e limitada formação técnico-profissional;
  • Deficiente acesso dos produtores ao financiamento, aos mercados e ao ambiente económico adequado;
  • Fraqueza da pesquisa e investigação e limitado uso dos resultados da ciência no incremento da produtividade;
  • Deficiente rede de infraestruturas que tornam elevados os custos de transação.

PL: O que é que Moçambique deveria estar a fazer enquanto país para potenciar o desenvolvimento económico local, que ainda não está a fazer?

SV: Há três vetores que considero nevrálgicos para acelerar o desenvolvimento económico local. O primeiro tem a ver com o ainda limitado alcance das medidas concretas, visando tornar o sector privado local mais pujante, numericamente alargado e com um impacto económico mais substantivo nos territórios. O segundo diz respeito ao ampliar do movimento, visando tornar o “vírus do empreendedorismo” como um fenómeno de massas em Moçambique. O terceiro está relacionado com a necessidade de implantar em “cada canto e encanto de Moçambique”, inequivocamente porque não existe território algum do país onde não exista potencial para coisa alguma, os serviços de apoio ao desenvolvimento de negócios.

Eu tenho defendido que os próximos 20 anos serão os anos em que teremos de concentrar a nossa atenção no desenvolvimento económico. É fundamental preparar quadros para apoiarem o desenvolvimento económico, fortalecer instituições para tornar mais próspera a economia do país, orientar a diplomacia para ajudar nos negócios, potenciar as forças de defesa e segurança para proteger o investimento privado, melhorar a máquina de administração de justiça para cristalizar a confiança na figura do contrato e tornar mais confiantes os investidores, enfim, o crescimento e desenvolvimento económico, sobretudo se for inclusivo, vai fragilizar rapidamente os pilares nos quais assenta a pobreza.

É frequente ouvirmos que Moçambique é rico em recursos naturais (com destaque para os solos aptos à prática agrícola, as florestas, o carvão, o gás natural, as areias pesadas e outros recursos minerais), que tem um amplo mercado potencial da SADC, uma localização estratégica viável aos negócios, uma costa extensa banhada pelo Oceano Índico que permite fortalecer o turismo e a pesca sustentável, etc, etc, etc. Para podermos explorar melhor essas oportunidades em benefício da população, temos de operar mudanças de conceção profundas que alterem a ordem, a ênfase, o ritmo e a essência da questão fundamental. Para melhorar o ambiente de negócios, a competitividade, o índice de liberdade económica, a liberdade de imprensa, o índice de corrupção e boa governação, o índice de desenvolvimento humano, entre outros indicadores, o fundamental não é a lista de potenciais que arrolámos anteriormente. 
No momento em que nos adentramos profundamente na globalização e na economia de conhecimento, a maior riqueza que um país pode ter é a inteligência criativa do seu Povo. O primeiro passo é ter uma educação relevante para o sector produtivo e a sociedade, e esta seja de alta qualidade. Países que investiram pesadamente na educação, na ciência, na tecnologia e na inovação - como Singapura, Japão, Taiwan, Coreia do Sul, Israel, China, Malásia, Austrália – estão a colher os benefícios do investimento estratégico que fizeram. Tendo uma população bem treinada, munida de cultura de trabalho e com espírito empreendedor, tem-se muitas probabilidades de erguer instituições pujantes, visionárias e proactivas que possam conduzir os processos complexos de desenvolvimento para uma meta bem-sucedida. Tem sido hábito repetir aos meus alunos que “pessoas e instituições de qualidade fazem a diferença no desenvolvimento”, citando Bil Clinton. É fundamental desmistificar a tese muito propalada de que o desenvolvimento deriva da disponibilidade de recursos naturais. Eles não deixam de ser importantes, mas como meios usados com vista a um propósito maior, e não como a “varinha mágica” que resolve todos os problemas de desenvolvimento. É preciso mentalizarmo-nos que transformar é mais valioso que ter”. É evidente que esta abordagem é discutível e tem gerado muita controvérsia.
 

A maior riqueza que um país pode ter é a inteligência criativa do seu Povo.



PL: As recentes descobertas de recursos naturais em Moçambique estão a potenciar o desenvolvimento económico local? Se sim, em que medida? Se não, porquê?

SV: Como bem referem, as descobertas e, principalmente, a exploração dos recursos naturais é uma realidade relativamente recente em Moçambique. O que posso assegurar é que embora esse fenómeno não tenha uma vida longa no país, ele assume-se inquestionavelmente como um dos assuntos mais badalados na imprensa, tem povoado o imaginário de muitos moçambicanos, tem servido como o rastilho para inflacionar expetativas e tem servido, igualmente, como campo de batalha para debates fraturantes, inconclusivos, e para a abertura de uma nova tipologia de conflitualidades.

No contexto atual de “Moçambique em Transição”, e ao abordar especificamente o assunto dos recursos naturais versus desenvolvimento económico local, gostaria de destacar três ideias basilares e inspiradoras do pensamento de Albert Hirschman, a saber: 

  • As medidas para desenvolver um país devem ser analisadas caso a caso, mediante a exploração dos recursos locais para conseguir os melhores resultados (impor uma estrutura doutrinal uniforme sem considerar as circunstâncias locais é uma receita segura para o fracasso); 
  • Quando uma necessidade é satisfeita abre-se imediatamente espaço para a ocorrência de um novo problema, num ciclo sem fim de necessidade-problema-solução-problema, ou seja, temos de ter a capacidade para satisfazer as demandas crescentes e mutáveis das sociedades;
  • A postura de combate permanente ao que chamou de “fracassomania”, o pessiminismo larvar que dificulta perceber as mudanças que estão a ocorrer (naquilo que considerou como os “obstáculos para enxergar o desenvolvimento”).

Ora, estas três ideias permitem que possamos encarar e que aprendamos a posicionar os recursos naturais não como o problema mas como a solução para a erradicação da pobreza e a promoção do desenvolvimento sustentável de Moçambique.

Eu simpatizo muito com uma outra colocação do assunto, ou seja, como os recursos naturais podem contribuir para acelerar o desenvolvimento económico local, tendo em conta que os mesmos localizam-se maioritariamente nas áreas rurais, onde vive a maioria da população do país. Explicando as razões da minha opção, gostaria de referir que se encararmos os recursos naturais como uma panaceia que resolve todos os problemas de desenvolvimento do país, estamos, sem nos apercebermos, a “inverter os dados da equação”. Como referi anteriormente, entre os fatores determinantes para o desenvolvimento, certamente pontifica a qualidade e criatividade dos recursos humanos, bem como o reforço crescente do poder das pessoas e das instituições. Os recursos naturais são como um veículo, que deve ser sabiamente conduzido para nos permitir chegar ao nosso destino, que é a outra margem do rio onde há mais prosperidade, bem-estar e desenvolvimento humano.

Para terminar, dizer que concordo com a visão de Daron Acemoglu e James Robinson, na sua obra “Porque Falham as Nações”, em que os autores apontam que quando os cidadãos derrubam as elites que controlam o poder e criam uma outra sociedade em que os direitos políticos são mais amplamente distribuídos e onde a maioria das pessoas tem a possibilidade de aproveitar as oportunidades económicas, há claramente mais probabilidade de nessas sociedades os recursos naturais servirem como meios para promover a prosperidade porque as instituições políticas e económicas inclusivas, e não extrativas, lubrificaram previamente as engrenagens. 

 


Os recursos naturais são como um veículo, que deve ser sabiamente conduzido para nos permitir chegar ao nosso destino.



PL: O sector da agricultura tem sido devidamente valorizado e aproveitado em Moçambique? Se sim, quais são as evidências? Se não, o que poderia ser feito?

SV: Costumo dizer que a agricultura em Moçambique é muito mais que uma atividade económica. Tem a ver com processos sociais, está relacionada com a cultura, com o poder, o dinheiro, o simbólico, a ocupação do espaço, a economia, as relações sociais, o ambiente, enfim, a agricultura é a matriz fundamental na qual assenta a vida global da maioria da população rural de Moçambique. Não é por acaso que a agricultura é considerada como a base do desenvolvimento nacional.

A situação prevalecente na agricultura de baixa produtividade e com reduzidos rendimentos agrícolas, constitui um dos maiores desafios de Moçambique e está intimamente ligada à questão da pobreza e do desemprego. Esta constitui a razão principal para o afluxo desordenado das populações rurais para as zonas urbanas, onde exercem uma pressão sobre as infraestruturas urbanas, engrossando os níveis de desemprego. Essa situação, no meu ponto de vista, não se deve principalmente à falta de interesse em apostar decisivamente nessa atividade económica estratégica, mas ao contexto de elevada dependência externa que o país viveu, e que ainda prevalece de certa forma embora com tendência a reduzir-se. Só com a crise mundial de alimentos entre 2007 e 2008 é que muitos parceiros de cooperação mostraram interesse em investir na agricultura e em outras atividades económicas com ela correlacionadas, como a agro-indústria, as pescas e o comércio rural.

Perante fatores concretos como o elevado ritmo do crescimento populacional, a maior demanda de alimentos, a alteração nos padrões alimentares e o aumento do preço dos alimentos, o crescimento galopante da urbanização e o seu impacto social, o efeito das mudanças climáticas e a maior pressão sobre a terra em virtude da competição exercida pelos biocombustíveis e a exploração dos recursos minerais, agregam novos dilemas e desafios aos tradicionais problemas relacionados com a agricultura e a insegurança alimentar.

Moçambique afirma-se hoje no mercado global como um território de múltiplas e diversificadas oportunidades. Assume-se como o país da agricultura e da agro-indústria, das madeiras valiosas e dos recursos pesqueiros, de belas praias para o desenvolvimento do turismo sustentável, sendo reconhecido como o país do alumínio, das areias pesadas, do gás natural e do carvão, mas também dos serviços de transporte com ligação para o hinterland. Moçambique é um país bem posicionado para erguer uma pujante economia multissectorial. Advogo que não seria uma estratégia atualmente correta fazer uma “opção a todo o terreno” exclusivamente na agricultura, como se não quiséssemos enxergar o que os Inquéritos aos Orçamentos Familiares (IAF’s) nos mostram: as famílias que diversificam as suas fontes de rendimento contam-se entre as menos pobres. Por conseguinte, a agricultura vai beneficiar da “lufada de ar fresco” que será gerada por um frente ampla de áreas diversas como o turismo, a agro-indústria, as pescas, as construções, os recursos minerais, os transportes e as comunicações, o comércio, o sistema financeiro, entre outras. Enquanto tivermos como preocupação a erradicação da pobreza, da fome e das desigualdades sociais, não temos como não cogitar as opções mais eficientes e sustentáveis para resolver a questão agrária e rural, que são assuntos eminentemente políticos e que demandam políticas públicas melhor sincronizadas com os anseios, as perspetivas e as dinâmicas dos agentes económicos, em particular as Pequenas e Médias Empresas (PME).

PL: Qual a situação que o fez aprender mais em termos de liderança, e o que aprendeu?

SV: Quando, como um jovem coordenador de um Projecto de Apoio ao Desenvolvimento Rural no Chókwè, em 1995, tive que exigir a recalendarização das dívidas das associações de agricultores, em virtude de terem tido um mau ano agrícola, e não a opção defendida por “técnicos expatriados paternalistas” de simplesmente perdoar a dívida. Passados 14 anos, um ex-presidente de uma associação de agricultores procurou-me para reconhecer o papel de liderança e pedagógico que havia assumido e que tinha permitido que ele aprendesse a essência e a lógica de um sistema de crédito. Esse conhecimento adquirido permitiu que este se tornasse bancável e ampliou significativamente o seu negócio agrícola, tornando-se atualmente num dos prósperos agricultores da zona.

Este reconheceu que na altura não tinham encarado positivamente a minha atitude, principalmente por ser moçambicano e filho do Chókwè, que estava a defender uma opção aparentemente contra a associação. Informei-o, a sorrir, que estava a “respeitar as regras do jogo previamente estabelecidas” e que não existia justificação convincente para perdoar a dívida. Recordei-lhe que o projeto era piloto e que visava capacitar as associações para futuramente manterem relações comerciais com os bancos comerciais a operar na zona. Aquela experiência ensinou-me que nem sempre os resultados do nosso trabalho podem ser colhidos imediatamente ou no curto prazo. A capacitação de pessoas e as instituições requerem tempo, e é fundamental ter sempre presente o nosso escopo, os objetivos estratégicos e operacionais e quais os resultados que pretendemos alcançar com a intervenção. Firmeza nos propósitos, evitar tomar decisões emocionais, rigor na gestão e ter sempre presente o futuro desejado são fatores críticos de sucesso nos projetos.

PL: Qual o líder nacional ou internacional cuja liderança destaca, e porquê?

SV: Muitas pessoas da minha geração, quando adolescentes e jovens, inspiraram-se em personalidades como Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Eduardo Mondlane, Fidel Castro, Madre Teresa de Calcutá, Samora Machel, John Kennedy, Julius Nyerere, Che Guevara, entre outros. Esses foram algumas das individualidades que se destacaram por distintas razões e que eram tidos, por adolescentes e jovens idealistas e irreverentes como nós, como um farol a ser seguido.

NMandela1Um líder que gostaria de destacar é Nelson Mandela (“Madiba”), falecido no dia 05 de Dezembro de 2013. Líder histórico contra o regime do Apartheid na África do Sul, foi um exemplo de dedicação a uma causa, a liberdade, a independência, a igualdade de direitos e oportunidades e a luta pela autodeterminação dos Povos. Mandela colocou sempre os interesses do Povo sul-africano acima dos seus interesses pessoais e familiares, foi persistente e coerente no interface entre a sua visão e a ação concreta no dia-a-dia.

O período de cerca de 27 anos que ficou preso pelo regime segregacionista, não fertilizou o seu coração de ódio, rancor e vingança. A sua estatura moral, os seus valores éticos e a sua crença no ser humano, permitiram-lhe usar o perdão, o humanismo, a tolerância e a convivência sã, como catalisadores da mudança e de uma onda de esperança para a edificação de um mundo assente no convívio fraterno, na solidariedade e na exaltação dos valores do humanismo. Mandela liderou uma transição complexa, mas o seu espírito altruísta, conciliador, construtivista e democrático levou à destruição do edifício que tinha como pilares a segregação racial.

Não é por acaso que é considerado como um dos líderes mundiais que mais influenciou positivamente a história do século XX e os primeiros 13 anos do século XXI. Sendo um homem fruto do seu tempo, Mandela é uma referência singular do que é bom em todos os tempos, ou seja, ele viveu no seu tempo, moldou o seu tempo e teve a grandeza de ultrapassar o seu tempo, sendo por isso considerado um “ícone global”. É por essas razões que considero Nelson Mandela como um farol da liberdade, da dignidade e do humanismo. Tendo perdido a vida no início do mês de Dezembro de 2013, o que foi uma perda para toda a humanidade, devo confessar que acredito que o mundo tornou-se um espaço mais digno e aprazível de se viver porque ele viveu, ensinou através da sua crença e atos concretos e deixou um legado singular e incontornável.

PL: Quais são os três principais desafios que confrontarão os líderes nos próximos 10 anos?

SV: Num mundo que enfrenta rápidas e profundas transformações, como antes nunca conheceu, reputo como relevantes para os próximos 10 anos os três desafios que a seguir menciono: 

  • Investir pesada e massivamente na educação, requalificação dos recursos humanos, ciência, tecnologia e inovação como fatores de reforço da competitividade e com efeitos multiplicadores pela economia e sociedade;
  • Como assegurar um melhor e mais abrangente uso das novas tecnologias de informação e comunicação para se obterem resultados económicos e sociais mais impactantes e sustentáveis?
  • Estabelecer mecanismos, procedimentos e atitudes que assegurem um mais amplo envolvimento dos atores relevantes nos processos, uma partilha de responsabilidades e o entendimento de que o desenvolvimento é um jogo que frequentemente é ganho pelas equipas mais colaborativas, empreendedoras e que sejam portadoras do ADN da vitória.

PL: Quais são as três principais qualidades mais importantes para um líder nos próximos 10 anos?

SV: Como também deve acontecer neste caso, há uma multiplicidade de qualidades importantes para um líder nos próximos 10 anos. Todavia, reputo três como prioritárias: 

  • Ter uma visão clara do futuro desejado e a capacidade de motivar uma equipa competente e audaciosa para alcançar o destino desejado;
  • Possuir a coragem, a determinação e a perseverança para “fazer acontecer” projetos considerados pelos relutantes/pessimistas como utópicos e arrojados; 
  • Acreditar no poder da comunicação, o que pressupõe o estabelecimento de uma densa rede de parceiros que permitam cristalizar aquilo que considero serem as “instituições de aprendizagem”.

PL: Onde mais tendem a falhar os líderes?

SV: Há três áreas em que considero que alguns líderes tendem a falhar, a saber: 

  • Nem sempre têm a inteligência e a sabedoria de se rodearem de gente competente, sincera, vertical e com espírito crítico (apostando muitas vezes, para seu aparente conforto, no nepotismo, amigos incompetentes, “yes man´s”, bajuladores, “puxa-sacos”, entre outros indivíduos do mesmo calibre;
  • Deficiências na transmissão (comunicação) à sua equipa, da sua visão, objetivos estratégicos, metas e prioridades, o que não permite que a equipa funcione como um “corpo comum”; 
  • É um síndrome que considero de “ter a fama e deitar-se na cama”, desleixando-se e não dando a devida atenção por forma a continuar a assumir com sucesso os desafios do futuro.

Em suma, é vital que os líderes tenham excelentes colaboradores, saibam comunicar de forma eficaz e efetiva com todos os “stakeholders” e apostem no trabalho árduo, afincado e sempre com paixão para almejar a autossuperação. Tenho uma frase que repito para mim mesmo frequentemente: “Aqueles que se concentram exageradamente nos sucessos obtidos no passado perdem a oportunidade de explorar os milhares de potenciais sucessos ainda dormentes”. Por isso recomendo: acorde, arregaça as mangas, ponha a mão na massa, explore a sua criatividade e sentido inovador, estabeleça parcerias com outros visionários e sonhadores, procure chegar até onde outros ainda não alcançaram e exploraram.

PL: Um dia, o que é que o mundo vai dizer de si?

SV: Foi um indivíduo que procurou sempre aprender e obter conhecimentos sobre assuntos relacionados com o desenvolvimento rural, desenvolvimento económico local e agricultura, entre outras temáticas. Procurou aprender com todos, em todos os momentos, com todas as pessoas e durante toda a vida.

Fez algum esforço, não sei se bem calibrado e frutífero, no sentido de registar, sistematizar e divulgar algumas visões, perceções e inquietações para partilha com o público, bem como procurou ensinar o pouco que aprendeu ao longo da vida, aos familiares, amigos, estudantes e colegas.

 


Salim-Vala-Mocambique-2Salim Cripton Valá tem um mestrado em desenvolvimento rural, cursos de especialização em estratégias de alívio à pobreza e desenvolvimento sustentável, gestão de desenvolvimento económico local, enfoque territorial do desenvolvimento rural, gestão de risco de desastres e desenvolvimento sustentável, desenvolvimento empresarial através de cadeias de valor, entre outros.
Já foi Coordenador do Projecto de Apoio as Políticas Agrárias e Desenvolvimento Rural (1995-1998), Chefe do Departamento do Secretariado Técnico da Abordagem de Desenvolvimento Rural (2000-2004), Director Nacional de Promoção do Desenvolvimento Rural (2005- Abril de 2010) e, desde Maio de 2010, é o Secretário Permanente do Ministério da Planificação e Desenvolvimento (MPD).
É docente da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), na Faculdade de Letras e Ciências Sociais, desde Agosto de 1997, lecionando também na Universidade Católica de Moçambique (UCM), Faculdade de Educação e Comunicação, e na Universidade Politécnica, onde dá aulas de Teorias de Desenvolvimento Sustentável, Desenvolvimento Comunitário, Desenvolvimento Económico Regional e Local e Economia Agrária e Desenvolvimento Rural. 
É autor de 4 livros e mais de três dezenas de artigos em revistas de especialidade e tem proferido palestras em universidades, conferências e simpósios nacionais e no estrangeiro, sendo membro de organizações da sociedade civil como o Observatório do Meio Rural (OMR) e o Centro de Estudos Interdisciplinares de Comunicação (CEC). 
Nos últimos anos tem estado a desenvolver pesquisas sobre o desenvolvimento rural e agrário, desenvolvimento económico local, financiamento as PME’s e desenvolvimento endógeno.